sábado, 4 de maio de 2013

Cancro: As duas faces do processo inflamatório

«Todos os organismos vivos são naturalmente capazes de reparar os seus tecidos após uma lesão. Nos animais e nos seres humanos, o mecanismo básico deste processo é a inflamação. Dioscórides, um cirurgião grego no século I, descreveu a inflamação em termos tão simples que ainda hoje são ensinados em todas as faculdades de medicina: Rubor, Tumor, Calor, Dolor, ou seja, vermelhidão, inchaço, calor e dor. Por detrás destes sinais externos, desencadeiam-se processos complexos e poderosos.


Quando um tecido é lesionado - devido a uma pancada, um corte, uma queimadura, um veneno ou uma infecção - a lesão é detectada pelas plaquetas do sangue. Ao agruparem-se em torno do segmento lesionado, libertam uma substância química - o PDGF, ou factor de crescimento derivado de plaquetas. O PDGF alerta os glóbulos brancos do sistema imunitário que, por sua vez, produzem uma série de outras substâncias transmissoras. Têm nomes estranhos e funções diversas.

Estas citoquinas, chemoquinas, prostaglandinas, os leucotrienos e tromboxanos, coordenam as operações de reparação. Primeiro, dilatam os vasos na zona lesionada para facilitar o afluxo de outras células imunitárias convocadas como reforços. Em seguida, selam a entrada através da coagulação de sangue em torno da agregação plaquetária. Depois, tornam o tecido circundante permeável para que as células imunitárias possam entrar e perseguir os intrusos onde quer que estejam. Por fim, desencadeiam o crescimento das células do tecido danificado. Este pode então restaurar a parte que falta e criar pequenos vasos sanguíneos para fornecer oxigénio e nutrientes ao local de reconstrução.

Estes mecanismos são absolutamente essenciais à integridade do organismo. O nosso corpo submete-se sempre a este processo de reconstrução quando é agredido, o que é inevitável. Quando se encontram bem regulados e adaptados às outras funções das células, estes processos são perfeitamente harmoniosos e autolimitativos. Isso significa que, uma vez executadas as substituições essenciais, o crescimento de novos tecidos pára. As células imunitárias, activadas para lidar com os intrusos, regressam ao seu estado de vigilância, ou seja, ficam de plantão. Trata-se de um passo fundamental para evitar que as células imunitárias continuem o seu trabalho e ataquem tecido saudável.

Recentemente, descobrimos que o cancro, tal como um cavalo de Tróia, explora este processo de reparação para invadir o organismo e levá-lo à destruição. São estas as duas faces da inflamação: se, por um lado, o seu objectivo é sarar ajudando a criar novo tecido, também pode desviar-se deste e favorecer o crescimento canceroso.(...)

No caso da cicatrização normal de lesões, a produção de substâncias químicas inflamatórias pára quando o tecido está reparado. No caso do cancro, a produção dessas substâncias é contínua. Por sua vez, o excesso de químicos inflamatórios nos tecidos circundantes bloqueia um processo natural chamado apoptose - suicídio celular. A apoptose está programada geneticamente em cada célula para evitar a anarquia devido à superprodução de tecidos. As células entram em apoptose ao receberem sinais de que já foram criadas células suficientes para formar tecido saudável. Desta forma, ao mesmo tempo que estimulam o seu próprio crescimento, as células cancerosas também se protegem da morte. É a combinação destes factores que permite a expansão gradual do tumor. 

Ao deitarem achas para a fogueira da inflamação, os tumores criam outra anomalia. Desarmam as células imunitárias adjacentes. Em termos simples, a superprodução de factores inflamatórios semeia a confusão entre os glóbulos brancos vizinhos. As células NK (natural killer cells) e outros leucócitos são neutralizados. Como nem sequer tentam combater o tumor, este prospera e cresce a olhos vistos.

A força motriz que está por detrás de um tumor é, em larga medida, o círculo vicioso que as células cancerosas conseguem criar. Ao encorajar as células imunitárias a produzir inflamação, o tumor convence o organismo a produzir o combustível de que necessita para se desenvolver e invadir os tecidos circundantes. Quanto maior for o tumor, maior será a inflamação causada, e mais probabilidades terá de crescer.

Esta hipótese foi amplamente confirmada por estudos recentes, como podemos verificar na revista Science. Ficou provado que quanto mais êxito os cancros têm a provocar a inflamação local, mais agressivo o tumor se torna, e mais facilmente se alastra a longas distâncias, acabando por atingir os nódulos linfáticos e criar metástases.» - Adaptado do livro anticancro de David Servan-Schreiber

Mais sobre o processo inflamatório, e formas de o evitar, neste blogue através do link: Processo inflamatório

Informação pormenorizada (em inglês) sobre o processo inflamatório no site do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center de New York, um dos mais conceituados centros de investigação de cancro em todo o Mundo: http://www.mskcc.org/research/lucille-castori-microbes-inflammation